Como foi trabalhar na Feira do Livro pela segunda vez?
Dizem que não se deve voltar ao sítio onde já fomos felizes. Pois eu digo que se pode voltar, sim, e ser feliz outra vez.
Em 2017 decidi trabalhar na Feira do Livro de Lisboa (podem ler o post sobre a experiência aqui e a entrevista que dei sobre o assunto ao blog A Mulher que Ama Livros aqui) e foi uma experiência incrível. Não sei se foi por ser o primeiro ano, em que era tudo novo, se foi por todas as dificuldades que o calor desumano que estava na altura provocou (incluindo um espírito de equipa brutal entre todos os que lá estavam a trabalhar), se foi porque o mundo se lembrou de que a Feira do Livro era fixe e abarrotou todos os metros quadrados possíveis, mas realmente a FLL o ano passado teve uma aura especial. Não sei bem explicar, nem acho que o vá conseguir por palavras, por isso deixo aqui a injusta expressão de "só quem lá esteve - e sentiu - é que sabe". Nunca tinha lidado com clientes (apesar de na minha experiência profissional ter de lidar com pessoas de vários tipos e áreas) e nem sempre é fácil. Nunca tinha tido um trabalho tão duro fisicamente, porque acreditem que o é. E nunca tinha passado tanto tempo num ambiente em que só se fala, vê e respira livros. Foi mesmo muito, muito bom. Tanto que quando pensei voltar este ano (porque queria muito voltar) tive medo de estragar essas memórias e o bom feeling com que saí de lá o ano passado.
Mas foi muito bom outra vez. E quando me perguntam se gostei mais deste ano ou do ano passado, não sei responder. Genuinamente. Foram duas experiências diferentes, ainda que no mesmo sítio. Claro que a primeira foi especial, mas nesta estive mais segura, tranquila. E acreditem ou não, trabalhar na Feira ajuda a espairecer de outras preocupações.
A Equipa
Como os responsáveis da editora já me conheciam, não tive que passar pelo processo de selecção e formação outra vez. Alguns foram super queridos, receberam-me com um abraço e deram-me as boas vindas outra vez. Outros nem por isso, comprovando que quem é antipático uma vez, vai ser sempre, e não é por estar numa situação de stress diário que não pode ser gentil e educado. Até porque responsáveis que estiveram lá, pela primeira vez, este ano foram do mais querido, compreensivo e encorajador que pode haver. Ficaram surpreendidos por, no geral, sabermos tanto sobre livros, mesmo sendo colaboradores externos, e agradeceram-nos a dedicação. Mas a verdade é que nem todos os que vão trabalhar para a Feira gostam de ler e conhecem os básicos. Apercebi-me de alguns casos, que estavam ali por estar, para fazer as horas, ganhar o dinheiro e pronto. Mas cada um sabe de si.
Muitos dos colegas que lá trabalharam o ano passado, este ano não foram, tirando dois ou três. Já sabendo disso à priori, antecipei a ideia de que não ia ser a mesma coisa. E não foi. Foi diferente, com condições diferentes, com colegas e clientes diferentes, eu própria com um espírito diferente. Afinal, quem é exatamente a mesma pessoa que era há um ano atrás? Foram três semanas a lidar com pessoas novas (tirando duas ou três que já lá tinham estado o ano passado, com quem me dou muito bem e de quem ainda fiquei a gostar mais) e a constatar, mais uma vez, que só temos a ganhar em abrir espaço para conhecermos as pessoas que nos rodeiam e ter um genuíno interesse por elas. O ambiente fica melhor, o companheirismo e cumplicidade para o bem comum também. Pessoas com mais quinze ou menos dez anos que eu, todas juntas com um mesmo objetivo. A interajuda e o espírito de equipa, no geral, foram ótimos. Quando um não sabe, o outro ajuda. Quando um não pode, o outro faz. A troca de cromos constante é deliciosa. Conversávamos muito, ríamos muito e, sobretudo, ajudávamo-nos muito. É uma troca humana especial. E fico mesmo feliz por poder viver estes momentos. E sempre com boa disposição, mesmo quando apareciam clientes empenhados em tirar-nos do sério.
O Clima
O clima esteve muuuito mais ameno que o ano passado. Graças a todos os santinhos. Depois do sufoco do calor extremo, em 2017 - que nos deixava de rastos, a suar e a borrifarmo-nos com água gelada o dia inteiro - este ano esteve um tempo excelente. Só descartava dois dias de chuva chata que afungentou as pessoas da Feira e nos dificultou a vida com tapa-os-livros / destapa-os-livros. De resto, não esteve demasiado calor, nem demasiado frio, corria uma brisa leve para arejar as ideias, foi perfeito. Apesar das muitas horas em pé, para cima e para baixo, das centenas de agachamentos para endireitar livros, de andar a acartar com caixotes pesados, senti-me muito menos cansada este ano, ainda que estivesse fisicamente moída quando terminou.
Os Clientes
Do ano passado só me lembro de um senhor arrogante e mal educado. Este ano apanhei mais. A falta de vitamina D afeta o humor e andaram tantos portugueses a sofrer com esta limitação até há poucos dias. Pessoas que nem um "boa tarde" ou um "pode ajudar?" dizem antes de mandarem um "quero tal livro". Pessoas que viram a cara e seguem sem um "obrigado" depois de eu dizer que não tenho o que querem. Pessoas que respondem torto quando digo que um título já esgotou ou não foi para a Feira. E tantos, tantos que insistem que certo livro é da Bertrand. E eu lá tenho que debitar, pela 653ª vez, que ali estamos numa feira de editores e não livreiros. E eles insistem. Porque viram no site e nas lojas. E eu volto a repetir que tal livro não é nosso. E eles tiram o telemóvel do bolso, ligam a net e pesquisam. E abrem a fotografia no site da Bertrand enquanto dizem "Está a ver, tem um B de Bertrand". E eu lá explico que aquilo é a marca d'água, peço "com licença" e faço zoom no ecrã deles enquanto digo, "É editado pela D. Quixote, que faz parte do grupo Leya, é do outro lado, lá em cima!". Todos, sem excepção, fazem aquele "ahhhhh realmente não me tinha apercebido." E seguem caminho, já sem olhar para mim, porque foram teimosos e viram que não tinham razão. Tantas, tantas vezes. E, mais uma vez, se ganhasse um euro por cada vez que perguntam onde são as caixas - a sério que ainda temos este problema? - e como funciona a Hora H, estaria a escrever-vos isto de uma ilha paradisíaca nas Caraíbas, a beber uma piña colada.
Também há os simpáticos, os que querem conversa, os envergonhados (como uma senhora que procurava livros eróticos e me disse os títulos baixinho, não fosse alguém ouvir), os chatos (que levam uma lista interminável e demoram horas a dizer tudo o que querem), os perdidos (que só querem saber onde é a praça laranja ou onde se vendem gelados), os que só estão ali para passar o tempo, os que têm muita pressa e atropelam as outras pessoas para chegar a nós primeiro, os que reclamam dos preços, os que reclamam das filas, e os que estão ali só a ver as vistas.
A experiência livreira
O ano passado conheci muitos livros e autores por estar ali, presente, a ver as mesmas capas e títulos todos os dias. O tempo e a repetição fazem-nos ver as coisas com mais detalhe e atenção. E a vontade de trazer para casa livros que nem sabíamos que existiam? Este ano senti isso em dobro. Fui mais confiante nos meus conhecimentos sobre literatura, em geral, e livros daquelas editoras, em particular. E todos os dias acrescentava alguma coisa ao meu saber. Não é incrível? Por isso é que digo que é uma experiência muito enriquecedora tanto a nível profissional, como pessoal. Não tem só a ver com saber indicar ao cliente em que prateleira está o livro que ele quer, saber dizer se aquele título é o mais recente de um autor, ou porque é que não temos outras obras do mesmo na Feira. Tem a ver com "perder" tempo a falar de livros com os clientes porque descobrimos que eles gostam dos mesmos livros que nós. Tem a ver com saber indicar livros quando nos pedem uma sugestão depois de nos dizerem os seus gostos. Tem a ver com saber exatamente onde está certo livro, quando mais ninguém o acha e poder ajudar um cliente que andava ali perdido à procura. Saio da Feira sempre muito mais rica em conhecimentos e experiência humana.
Além de entrar neste mundo livreiro e perceber certos truques para tentar vender mais, fazer sobressair certo livro ou autor, compensar algumas falhas e, no meio disso, mediar a interacção entre autores e leitores, repôr livros que faltam, organizar as estantes de forma coerente e estar sempre atento ao que pode ser melhorado. Mal víamos um "buraco" deixado por um livro que foi levado, era ir rapiramente tirar um detrás para voltar a deixar a frente bonita. Até sonhei com isto, acreditam? E é muito giro ver de perto a devoção de certos leitores. Os que vão às sessões de autógrafos porque adoram um livro de uma autora e querem vê-la de perto, os que querem o último que saiu de certo autor porque já leram tudo dele, os que ouviram falar "daquela dos livros para vegetarianos" e querem ver se é realmente bom... Perceber os gostos de cada pessoa e ficar a imaginar o momento em vai ler os livros que leva da Feira era um dos meus exercícios preferidos. Alguém pegava no "Diz me quem sou", da Julia Navarro (que vendeu imenso), por exemplo, e eu ficava a imaginar se era para ler na praia, durante as férias, se o iam guardar para o sofá à frente da lareira, se se iam esquecer do mundo enquanto o liam e o que iam sentir quando chegassem ao fim daquele calhamaço.
Já para não referir o vergonhoso facto de que ir à Feira todos os dias me obrigadou a comer mais farturas, gelados e waffles do que aqueles que gostaria de admitir. Fez-me quase diariamente ir meter o nariz no pó dos alfarrabistas. E andar kms dentro da feira, a dar as mesmas voltas quinze vezes. Mas também me fez encontrar muita gente que só conhecia dos blogs/canais/instagram, alguns amigos que passeavam por lá, e autores que, de outra forma, nunca teria tido a vontade sequer de ir meter conversa (como no caso do Richard Zimler).
Mais uma vez, foi maravilhoso. E, mesmo que não volte a trabalhar lá no ano que vem - sei lá como vai estar a vidinha nessa altura - vou sempre voltar à Feira com a sensação que ela também é um bocadinho minha.